Ambiguidades masculinas na construção da personagem Diadorim

Ao tempo em que se comemoram os 110 anos de nascimento de João Guimarães Rosa, uma obra lançada em Cajazeiras traz novas luzes sobre uma das personagens mais emblemáticas da literatura: Diadorim. Professora da Universidade Federal de Campina Grande, campus de Cajazeiras, a escritora Lígia Calado lançou em junho “Ave Diadorim”, pela Editora Appris, do Paraná, onde fala sobre a imagética da mulher em “Grande Sertão: Veredas”.

O livro, segundo Lígia Calado, é um ensaio crítico, resultado de discussões realizadas em debate com a temática rosiana, na coordenação de pesquisa e outros projetos que ela vem desenvolvendo junto ao Grupo Avançado de Estudos em Literatura, na UFCG. “A obra-prima do escritor é revisitada com intenção de leitura, análise e perspectiva crítica de estudo, não apenas para cumprir protocolos acadêmicos, mas como caminho de festa e celebração de uma escrita que merece ser lembrada, pois que reivindica para si visibilidade e interesse permanentes”, comenta.

É mais do que isso. O livro é dividido em quatro capítulos. No primeiro, Lígia Calado fala do “Sertão das mulheres encobertas”. Nos seguintes, analisa sobre “Sexo: as poesias do corpo, malandragem”, “Diadorim: a donzela guerreira”, “Dindurinh, A Ave Palavra” e “Voa Diadorim”.

No primeiro capítulo, Lígia aborda a perspectiva do “encoberto” que existe em Diadorim. Mas não só nela. Por isso, faz questão de enfatizar que em todas as mulheres que surgem como personagens do livro, há um certo recato no texto de Rosa. Ou nas narrativas de Riobaldo. É o caso de Bigri, mãe de Riobaldo, que morre cedo e quase não se sabe nada dela. Ou da feiticeira Ana Duzuza e a mulher de Hermógenes, que sequer tem nome. Também há os amores de Riobaldo: Norinhá e Otacília, além da própria Diadorim. Exceção apenas para as prostitutas do Verde-Alecrim. “Há sobre essas mulheres algo de indefinição. Se se conhece de onde vê, não se sabe para onde vão e vice-versa. Há, portanto, algo de nebuloso, de misterioso sobre elas, tal perspectiva não se restringindo à heroína, como faz supor um primeiro instante”, analisa Lígia.

Em “Sexo: as poesias do corpo, malandragem”, segundo capítulo da obra, Lígia Calado analisa, entre outras coisas, os vazios nos amores descobertos por Riobaldo: Nhorinhá, Otacília e Diadorim. Cada um desses amores com uma orientação específica. Norinhá seria a representação do amor cuja poesia se inicia no corpo. Já Otacília, é a mulher idolatrada, pura, virgem, com quem, no fim, se casa; uma “imagem ideal colhida, de passagem, num pedaço do sertão”. Por fim, Diadorim é a maior de todas as ilusões perdidas entre os amores de Riobaldo. “Está no receio de ser mandado, o medo de ser diminuído aos olhos de Diadorim, já que mais adiante, na narração, ele lembra de que Diadorim ‘gostava de mandar, primeiro mandava suave, depois, visto que não fosse obedecido, com as sete pedras’. Ao mesmo tempo que seduz, assusta a Riobaldo a força de opinião da heroína”, analisa.

Em “Diadorim: a donzela guerreira”, Lígia mostra como a personagem principal destoa das demais mulheres do livro em relação ao sexo e também dos jagunços, principalmente pela falta de conotação sensual. “Para Riobaldo, é um espanto descobrir que Diadorim dança”, diz. Essa descoberta, inclusive, vai incomodar ao jagunço. Não à toa, em determinado trecho da obra, Diadorim vai propor um pacto de abstinência a Riobaldo: enquanto estivessem em ofício de bando, nenhum dos dois colocaria a mão em mulher. Riobaldo cumpre a promessa por um tempo, enquanto em uma das passagens da narrativa Diadorim passa pela suspeita, por parte dos demais jagunços do bando, de ser homossexual.

No último capítulo, Lígia Calado enfatiza a tecla do idealismo presente na obra de Rosa. Numa análise bem interessante, a autora do livro fala sobre as várias identidades assumidas por Diadorim ao longo de “Grande Sertão: Veredas”, como “Din’durinh”, “Diá” e “Di”, todas elas provocadores de diálogo. É o caso de “Din’durinh” que, segundo Lígia, provavelmente seria uma abreviação que remete à Diadorim, vocábulo que lembraria o nome de um pássaro presente na obra: andorinha. “Assim, ciente dessa excepcionalidade em Rosa, a questão é tomada, restando procurar no texto do romance o ponto de interseção ou as associações metafóricas que se estabelecem entre mulheres e pássaros”, frisa. Essa analogia é pontuada, por Lígia, em vários trechos da obra de Rosa. Afinal, se em determinado momento o protagonista quer abraçar “Diadorim, como as asas de todos os pássaros”, em outro, há provas de que Diadorim e Otacília “não se bicam”, só para ficar em dois dos exemplos citados por Lígia.

O certo é que “Ave Diadorim: Imagética da mulher em Grande Sertão: Veredas” levanta novas possibilidades de leitura da obra de Guimarães Rosa. Sobretudo de uma leitura onde se busca o olhar feminino de Diadorim a partir das narrativas de Riobaldo. Um olhar que pode ser tão dissimulado como o de Capitu, a outra personagem emblemática da literatura brasileira. Aliás, consta que Rosa teria feito severas críticas a Machado de Assis. Interessante que ele usa o mesmo artifício do autor de “Dom Casmurro” na construção de uma personagem que só é mais ambígua porque é narrada pelo olhar masculino

linaldo.guedes@gmail.com

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