O indizível sentido da literatura na obra de Rosângela
Tenho recebido muitos livros, desde que me instalei no sertão da Paraíba. Na medida do possível, venho tentando ler o que me chega às mãos. Nem sempre consigo, por conta de afazeres outros que me impedem de viver apenas para a leitura. Alguns desses livros me encantam; outros decepcionam e um em especial me comoveu. Falo de “O indizível sentido do amor” (Editora Patuá), da Rosângela Vieira Rocha, cuja leitura acabei de terminar.
É uma obra que emociona pela narrativa, uma espécie de fuga e procura desde as primeiras páginas. Há uma dor tão pungente em reflexões sobre a vida, a morte, a viuvez, a solidão, o idealismo político e o cotidiano de um casal que, confesso, quase fui às lágrimas em suas últimas páginas.
Mas é também um livro muito bem escrito.
Como já disse, ainda sou do tempo em que uma boa narrativa se faz antes de tudo com uma boa história, bem contada, sem apelar para floreios inventivos em demasias. Os floreios devem vir atrelados à história do romance ou conto, e não o contrário. Não temos tantos James Joyce para inovar na linguagem. Mas temos bons contadores/as de histórias que desperdiçam essa capacidade procurando uma forma diferente de dizer algo. Dia desses recebi o livro de um jovem contista brasileiro. Por deferência e amizade, fiz matéria jornalística com ele divulgando o lançamento para o jornal. Depois, fui ler a obra. Começava a ler um conto e parava. Passava para outro, retornava a leitura do anterior e não conseguia concluir nenhum conto. Sim, o jovem escritor tinha o domínio das técnicas literárias, mas ao mesmo tempo em que procurava exercitar essas técnicas, esquecia que ao leitor interessa antes de tudo uma boa história, bem narrada, seja numa linguagem inventiva ou tradicional.
Rosângela se define como uma contadora de histórias. Sim, é. E que contadora de histórias, Rosângela é! “O indizível sentido do amor” se desenvolve basicamente nos aposentos de um hospital onde José recebe cuidados após ser diagnosticado com pneumonia. Digo basicamente porque a narradora, que não é outra senão a própria Rosângela, enreda a gente na história dela e de José, em idas e vindas que prendem a atenção do leitor do começo ao fim, sem dar tempo para um respiro. É um romance autobiográfico, mas Rosângela, como toda boa escritora, engana ao leitor. O tom do início, quando a narradora vai a Lisboa, em busca do passado do marido, é de que a narrativa vai se desenrolar apenas em torno da história de José – que em tempos de Ditadura no Brasil foi preso político e depois tentou reconstruir sua vida quase em silêncio. Após sua morte, a narradora vai em busca desse passado, para tentar entender melhor a história e os silêncios de José. E é aqui que o leitor entra, sem perceber, em outra trama: na própria história da narradora. História de solidão, sobretudo. E não apenas pela viuvez. Ainda nas recordações de quando José estava vivo, havia laivos solitários da narradora, justamente por conta dos vazios, dos buracos que ficavam na história de José.
Dessa forma, a narração se prende a coisas do cotidiano, coisas miúdas, coisas até da vaidade feminina (não que isso seja coisa miúda), a reflexões sobre a UTI de um hospital (para que serve um relógio nesses locais?, indaga), a forma como ela e José se conheceram, namoraram e casaram e, claro, o passado político oculto de José. Tudo isso numa narrativa que às vezes parece um jogo de espelhos. Só que o jogo de espelhos não é entre a narradora e José. É entre a narradora e a autora. Rosângela constrói um romance delicado, tenso e denso, numa linguagem que não é linear, mas é fluida. Um romance para a gente refletir sobre as renúncias de um engajamento político e também para refletir sobre as dores da vida, sobre as dores da morte.
Em tempo: Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim-MG. Já tem doze livros publicados, sendo cinco para adultos e sete infanto-juvenis. Recebeu alguns prêmios literários, participou de coletâneas, é professora e jornalista. Soube que está escrevendo um novo romance. Como virei seu leitor de carteirinha, já aguardo ansioso.