O dia da cidade e a emancipação política de Cajazeiras
Vinte e dois de agosto é o dia do padre Inácio de Sousa Rolim. Nasceu há mais de dois séculos, em 1800, numa fazenda de gado e algodão, em um trecho da qual ele viu e ajudou a surgir a povoação, mais tarde, distrito de paz, vila e cidade de Cajazeiras. A ação educacional do franzino sacerdote, ordenado em 1825 no Seminário de Olinda, está na raiz da formação de Cajazeiras e dos rumos de expressiva parcela da acanhada elite econômica, política e religiosa do interior, no seu tempo. Aquele núcleo urbano passou a expandir-se graças à atração exercida pelo abnegado educador, em função do colégio que ele foi edificando aos poucos, a partir da terceira década do século XIX. Por isso, é venerado com amor, espírito de gratidão e justiça por todos os cajazeirenses.
Padre Rolim nunca foi vigário.
Na vigência do Império, o catolicismo era a religião oficial e o pároco recebia a côngrua, remuneração paga com recursos públicos. Padre Rolim jamais dirigiu paróquia. Foi professor do Seminário onde se ordenou e, também, por curto período, ministrou aulas de grego no Colégio Pernambucano, notável estabelecimento de nível médio no Brasil.
A política não seduziu padre Rolim.
No regime parlamentar monárquico, de escassos letrados com formação superior, os partidos políticos e o governo recrutavam entre advogados, magistrados, sacerdotes católicos, médicos, oficiais das Armadas e jornalistas quadros técnicos para o desempenho de funções legislativas e executivas. As Assembleias Provinciais, a Câmara Geral e o Senado incorporavam em quase todas as legislaturas expressivo número de padres da Igreja Católica. Muitos exerceram importantes funções de governo e nas casas parlamentares. Padre Rolim poderia ter sido um deles. Não quis. Ora, ele nem sequer aceitou ser diretor da instrução pública da província da Paraíba, cargo equivalente, em nossos dias, ao de secretário estadual de educação. O convite, feito pelo presidente Ambrósio Leitão da Cunha, foi reiterado por Luiz Antônio da Silva Nunes, que assim registrou na Mensagem à Assembleia Provincial, de 15 de junho de 1860:
A 8 de março do corrente ano foi, como nos diz o meu antecessor, nomeado o padre Ignácio de Souza Rolim diretor da Instrução Pública da Província. Até esta data não comunicou esse digno sacerdote se aceitava ou não a nomeação. A 4 do corrente, oficiei de novo para que decida se aceita ou não o lugar com que foi contemplado.
Padre Rolim não aceitou. Desconheço, de outra parte, que seu nome tenha sido cogitado para compor a representação parlamentar de sua terra, tal o seu desapego pela ação política, ao contrário de vários sacerdotes, contemporâneos seus, que fizeram brilhantes carreiras políticas.
Por que padre Rolim assim agia?
Padre Inácio Rolim fez uma opção de vida. Quis trazer para nosso sertão as luzes do conhecimento e da fé. E conseguiu. Cumpriu a grande missão de alargar as oportunidades de estudo, no longínquo chão sertanejo, ao cuidar da educação sua gente no lugar onde nasceu, onde moravam seus pais, familiares e amigos. Foi essa decisão, firme e consciente, que permitiu a formação de Cajazeiras, com as singulares características que tanto nos envaidecem. Estou cansado de repetir: padre Rolim não foi mestre-escola. O que, aliás, não seria nenhum desdouro. Mas a atividade do professor de primeiras letras ou de instrução primária, jamais teria a repercussão social, econômica, moral e política decorrente da instalação de um colégio, tal qual foi o do nosso grande benfeitor. Só mesmo um estabelecimento que nem o dele ensejaria o surgimento das pré-condições nas quais assenta a origem de Cajazeiras. A essa causa se associada, obviamente, o esforço de exploração agrícola e pecuária,desenvolvido pelos primeiros povoadores, incentivados pelo sesmeiro Luiz Gomes de Albuquerque, coadjuvado porseu genro, Vital de Sousa Rolim, marido de Mãe Aninha, pais de Inácio Rolim.
É oportuno recordar.
O colégio foi sendo construído aos poucos. Naquele tempo de precários meios de transporte, feito em montarias que percorriam sinuosos caminhos, uma unidade de ensino de abrangência regional, como a do padre Rolim, adotava o regime de internato. Por essa razão, o colégio se expandia na medida em que os alunos iam chegando, de perto e de longe: da Paraíba, do Ceará, do Piauí, do Rio Grande do Norte, de Pernambuco para morar nas dependências da escola. Ali eles dormiam, se alimentavam, rezavam, recebiam lições de latim, grego, francês, ética, história natural, retórica,enfim de disciplinas que permitiam o acesso a seminários católicos e às raras escolas superiores então existentes no Brasil. Houve até casos, como o do jovem Joaquim Arcoverde, que, com os ensinamentos adquiridos em Cajazeiras, foi quase direto para a Europa. Retornou sacerdote, predestinado a desempenhar papel de relevo, como influente arcebispo e cardeal da Igreja Católica Apostólica Romana. Alguns discípulos do padre Rolim, voltaram para o sertão, padres e advogados, e se integravam ao corpo docente do colégio. Outros alunos sequer saiam daqui. Tornavam-se professores, induzidos pela excepcional figura do padre Rolim.
Por que relembro fatos tão conhecidos?
Pelo desejo de destacar as qualidades e a importância do nosso mais ilustre conterrâneo, merecedor, unânime, de todas as homenagens prestadas por Cajazeiras, ano após ano, no dia de seu aniversário. Unanimidade provida de respaldo histórico, confirmada por fatos e narrativas históricas, fundamentadas em documentos sérios e por memorialistas. Tudo isso faz perene e inesgotável o reconhecimento de todos nós.
A grandiosidade da gratidão cajazeirense, porém, não deve desdenhar o fato histórico. Lei municipal de 1948, na gestão do prefeito Arsênio Rolim Araruna, impôs artificial leitura da realidade, ao instituir a data de nascimento de Inácio de Sousa Rolim como “o dia dacidade”, logo confundido com a emancipação política de Cajazeiras. Um arranjo legal responsável por tremenda confusão histórica. Esse paradoxal desapego à história, além de falso, cobre de nuvens fatos passados, provoca perplexidade, incerteza e insegurança, sobretudo, em nossa juventude.
Já é tempo de desfazer o erro.
Uma coisa é a merecida e justa homenagem à memória do padre Rolim, no dia 22 de agosto. Outra é o regozijo coletivo, ufanista, pela emancipação política e administrativa do município de Cajazeiras, formalizada em 1863, por força da lei provincial nº 92, de 23 de novembro. Naquela data nasceu o município de Cajazeiras, com sede na vila do mesmo nome, e território desmembrado de Sousa. Cuidou-sea partir daí de implantar os órgãos inerentesao novo status, tomando-se a primeira sessão da câmara municipal,símbolo da emancipação político-administrativa, em 20 de junho de 1864, como a data de instalação do município.Em paralelo, vieram o juizado municipal, a delegacia de polícia e demais órgãos de afirmação da presença do Estado. A elevação à categoria de cidade, em 10 de julho de 1876, foi apenas mais uma etapa no sistema organizacional do Império.
Vamos respeitar a história, sem menoscabo do maior dos filhos de Cajazeiras.Por todas as razões aqui apontadas, proponho que se altere a lei de 1948, assinada pelo prefeito Arsênio Rolim Araruna, resguardando-se, com todas as honras,as homenagens ao padre Inácio de Sousa Rolim,em 22 de agosto, e se determine, legalmente, o dia 23 de novembro, como a data comemorativa da emancipação política de Cajazeiras.
Francisco Sales Cartaxo Rolim é escritor e presidente da Academia Cajazeirense de Artes e Letras – ACAL