A aldeia poética de Irismar

Lenilson Oliveira *

Sim. O título do livro de Irismar di Lyra, que teve a sua primeira edição em 1999 pela Editora Universitária (João Pessoa) e, vinte anos depois, tem seu relançamento pela Arribaçã Editora, é perfeito para expressar a pujança poética de Cajazeiras desde sempre.

Em “Cajazeiras: uma aldeia poética”, Irismar conse- gue, como talvez ninguém mais o tivesse feito, desnudar a ci- dade com todo o lirismo, sem deixar de soltar umas pitadas do sarcasmo peculiar do poeta que tem o domínio total so- bre o que escreve, deixando nas entrelinhas a sua intenção so- cial, saudosista, de revolta ou o que quer que seja mais, ca- bendo ao leitor a sua leitura própria.

Isso já foi dito de alguma forma pelos convidados do poeta na edição de 1999 sobre a sua poesia, que transforma cotidiano, experiências, sonhos, desalentos, saudades – tudo que lhe vem à alma, enfim – no lúdico e no telúrico que a só a literatura permite, mas não a todos nós, humanos.

A alma poética – ímpar, diria – de Irismar di Lyra já era sentida no estudante secundarista inquieto dos anos de 1970 no Colégio Estadual de Cajazeiras, quando deu início a participações em festivais e recitais de poesias na cidade, até o lançamento de “Reflexos” (GrafSet, 1978) e “Cantata para o agora – Exercícios existenciais” (GrafSet, 1998), além de publicações em coletâneas, como em “Antologia da Poesia Paraibana” (Ideia, 1995).

Já nos anos de 1970, o poeta já deixava patente a sua insatisfação com o estado de coisas ao seu redor e, no me- lhor estilo revolucionário que permeava as artes todas no pa- ís, com posicionamentos abertos ou velados, por conta da re- pressão governamental/militar da época, a saber, em “Ira”, de 1975, que está em seu livro “Reflexos”:

O desaforo me saiu

por entre os lábios.

Sem medir palavras,

eu disse coisas,

que não sei, se fora disso,

Eu também diria.

Assim, vemos a pujança poética de Irismar no seu livro de estreia, já deixando claro a que tinha vindo como artí- fice das boas letras e homem de lutas sociais, como sempre se revelou desde a juventude.

Em “Cajazeiras: uma aldeia poética”, o filho primogê- nito de “seu” Hildebrando Lira da Silva e “dona” Ana Alves de Lira – presentes na sua poesia desde sempre – desnuda o seu amor e impressões sobre a cidade que o adotou (ou teria sido o contrário?) aos seis anos de idade para entrar no mundo mágico das primeiras letras na Escola Profissional Monte Carmelo, de onde saiu para o Colégio Estadual e, por fim, pa- ra o curso de Letras no Campus V da então Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Já no primeiro poema do livro – que poderíamos facil- mente chamar de “inventário poético” de Cajazeiras e do ser- tão da Paraíba -, Irismar transporta o leitor para, entre outras coisas, a aridez da região contrastando com a amabilidade e simplicidade do sertanejo ao receber visitas em casa:

Só cego não vê,

O ouro do ser tão

É a forma de acolher.

Pode-se não ter o saber,

O bom trato, como o bom prato

É questão de ser tão gente.

O primeiro dos quatro livros que compõem “Cajazei- ras: uma aldeia poética”, é aberto com uma louvação a um dos símbolos mais fortes da cidade, que vem a ser

O Açude Grande

mais belo que qualquer açude

banha a minha aldeia.

No mesmo poema, ele não esconde a saudade e a vontade de tornar a Cajazeiras, pela sua condição de filho ausente:

 Voltarei a contemplar o seu crepúsculo

(para que a dor em meu peito abrande)

quero afogar as mágoas deste coração minúsculo

nas águas mansas do Açude Grande.

A partir daí, outras imagens, símbolos, locais da cidade e da zona rural do município, perpetuados na memória do poeta, viram poesia, como em “Pedra do Sapo”, numa relei- tura do poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira, de 1918, quando temos a nítida impressão de ouvi-los coaxarem, nu- ma perfeita construção onomatopeica:

Seu pai, um dia,

morreu na guerra.

Foi ou não foi?

– não foi!

– não foi?

Assim, “Pedra do Galo”, “Rua dos Tecedores”, Rua dos “Dez Chalés”, “Praça das Oiticicas” também são locais que trazem lembranças de outros e que fazem parte da reali- dade e do imaginário do poeta e compõem a sua aldeia.

No segundo livro, Irismar dá vazão ao bucolismo das paisagens rurais do município, como faz em “Patamuté”, “Guaribas”, “Curicaca”, “Capoeiras”, “Javigor”, mas também a personagens reais, a quem quis homenagear, como João de Manezinho, Jocélio Amaro, Padre Rolim, Lilia das Mangueiras e, muito especialmente, Don’Ana, sua mãe:

Don’ Ana

sabe coar café,

enxugar a louça,

temperar o feijão,

mexer o arroz

e à noite estar moça

para se ter.

Na abertura do livro 3, o poeta, então longe de sua ter- ra, busca inspiração em Gonçalves Dias para cantar a saudade de Cajazeiras na sua própria “Canção do exílio”, colocando um pé também na “Quadrinha” drummondiana:

Minha terra tem cajá

doce, qual nada no mundo!

tem Tereza Vieira de Souza

que não amou a nenhum Raimundo.

A religiosidade, a vanguarda, as tradições, a arte, o fol- clore, os costumes da Cajazeiras da época são também canta- dos no livro 3: “Piedade!”, “Flor de Liz”, “Pegadas”, “Novíssima canção do exílio”, “Cantiga de roda”, “Ciclo do couro”, etc.

Um quê de melancolia já pode ser sentido em “Frutos de época”, poema que abre o quarto livro:

Quisesse eu, peras,

asneiras!

Com tantos cajás pelos riachos:

Cacaré, Escurinho, Marimbas, etc. e tais…

Ou ameixas

ao longo das rodagens!

Como siriguelas de certo n’alguns quintais.

O eu lírico passeia e nos transporta para a sua infância sadia, de muitas traquinagens, correndo livre, comendo frutos do pé, sentindo saudades até das brigas de Dona Dideus:

Pelos cantos da sala

da Casa Grande da Fazenda,

ralha Dona Dideus:

– anda logo, “bexiguento”!

= esse moleque nunca foi boa bisca!

E em “A casa cai”:

Quero o canteiro aceso,

o tinhorão desperto

o hibisco com direito a borboletas

e rescendências que acolham beija-flores.

Dolores não é só um nome na infância,

Erotildes nunca esteve em minha adolescência,

eis porque não se morre de amores.

Depois vem “Partida de relancim”, “Decá o pé”, “Pela hora da morte”, “Mais um bolero”, “Beradeiro”, “Estória de menino”, “Um sítio solto no mundo”, “A que vim” e, fechando, “Ode a Cajazeiras Ou por tua culpa, por tua máxima culpa”, que merece atenção à parte:

De sabedoria te imagino poema;

No exílio, minh’alma inquieta-se.

Na condição de filho

fora de casa,

fiz de ti, Cajazeiras,

o teor dos meus poemas

e, à distância, outra cidade me acolhe,

sem seus atributos peculiares.

No poema, Irismar vai além do seu amor pela cidade e passa a “insultar” a Cajazeiras “pacata”, com sua “política raquítica”, “sem ateliês”, etc.

Não! a essa Cajazeiras feita Diocese,

que neutraliza os ideais dos filhos mais fiéis

e deixa que seus sonhos morram na Catedral.

(…)

Perdoa-me se n’algumas horas te acho feia,

te penso longe, te sinto fria.

Por tua culpa, por tua máxima culpa!

E finaliza:

Fora!… aquele que não sabe amar-te

Fora! Aquele que não quer reconhecer,

que pelos desígnios d’arte e cultura,

és a Terra que ensinou a Paraíba a ler.

No mais, fica o convite para passearmos pela aldeia poética de Irismar com garantias de saudosismo, melancolia e mil e um outros sentimentos, mesmo para quem não conhece Cajazeiras ou não viveu nela no stratu temporal no qual se situam os poemas.

Novembro de 2019, vinte anos após a primeira leitura

Prefácio do livro “Cajazeiras: uma aldeia poética”, de Irismar di Lyra (Arribaçã, 2019)

(*) Editor da Revista Destaque e da Arribaçã Editora

 

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